Shaktismo, o culto ao poder feminino
(imagem nepalesa do século XVIII da deusa Dhumvati,
uma viúva estéril que representa o Vir a Ser. Ela segura
o espelho traindo o desejo de usufruir a existência
no plano fenomenal. O espelho reflete o aspecto li-
mitante do potencial infinito do universo não criado.)
Shaktismo, o
culto ao poder feminino
Dentre as
ramificações do hinduísmo um dos
sistemas mais complexos é o culto à sacralidade feminina, conhecido como
shaktismo. O vocábulo shakti designa energia , a força motriz por trás de todos
os processos de transformação do mundo
fenomenal, levando do estado potencial ao
seu aspecto manifesto. Para o hindu, a feminilidade é a quintessência da
energia, sendo que sem ela toda a criação permanece latente, sem vir a despontar.
Na iconografia shakta, a deusa Kali pisa o corpo inerte de Shiva, deus da
transformação. ““Shiva sem Shakti é
incapaz de criar coisa alguma. Quando associado a sua própria shakti se torna
capaz de criar todas as manifestações.” afirma o texto Vāmakeśvara Tantra.
Uma única
grande fonte, a Mahadevi, grande
deusa, gera todas as energias, que se ramificam em infindáveis forças que sustentam a criação. Shiva, o aspecto masculino, é o detentor
das sementes, a iminência de todos os fenômenos, mas somente a Mahadevi, pode pô-los em movimento, já que é no abrigo
do útero que ocorre a fertilização, a nidificação, e o embrião é engendrado, sustentando todas
etapas de transformação. Cada etapa é regida por uma divindade feminina,
sacralizada e venerada. Shiva é o
guardião, em seu estado potencial, da diversidade dos fenômenos, mas são as devis que fazem com que eles se
manifestem.
A mulher, como
visto como por inúmeras culturas ginocentricas, é o conector que liga os
mundos, um canal por onde as diversas formas de
energia transitam , o locus que fecunda os fenômenos, ao promover o encontro
entre duas realidades antes compartimentalizadas e estanques. Entre os mapuches
, indígenas sul-americanos, a palavra que designa esposa-kure- significa literalmente “ cavidade fecunda (útero) por onde a
energia pura se canaliza”. Na imensa maioria das religiões politeístas, as
deusas são bem mais que apenas consortes das divindades masculinas, ocupando
funções imprescindíveis para a sustentação da criação ao estabelecer uma ponte entre
planos isolados.
O hinduísmo
não foge à regra. No panteão védico, deusas como Aditi, Saraswati , Prithvi ,
Vach entre outras são mantenedoras do equilíbrio do universo aportando
atributos que contrabalançam as ações masculinas. O mesmo ocorre com as
chamadas deusas purânicas, como Lakshmi, Parvati, Gayatri e Durga. Esta última,
uma consorte de Shiva, é que dá origem ao culto Shakta, que escapa do filtro
sacerdotal dos brâmanes, gerando um sistema heterodoxo dentro do hinduísmo: o
Tantra.
No Tantrismo,
a feminilidade é trazida no seu aspecto integral, isto é, se na tradição
ortodoxa as deusas enfatizam a expressão benevolente da feminilidade, associada
á maternidade, como proteção, amparo, compaixão, a deusa Shakta (tântrica)
carrega dentro de si todos elementos da energia feminina que transita por todos
os polos do psiquismo humano, inclusive os menos auspiciosos. A mitologia de
Durga enfatiza a importância de todas as energias mobilizadoras do psiquismo
feminino na manutenção da ordem cósmica. Quando o controle do universo se viu
ameaçado pelos asuras, inimigos dos deuses, estes se vêm obrigados a recorrerem
à deusa, que com sua ira incontrolável destrói todos adversários. Tres Mahavidhyas, desdobramentos de Durga,
como Kali, Tara e Chinnamasta tem seus mitos associados a lutas e vitórias
contra os asuras, seres poderosos, no entanto movidos pela ignorância. O termo
Mahavidhya significa o grande saber, ou grande ciência, portanto os ritos
associados à estas deusas, tem por fim derrotar os vestígios da insciência do
aspirante.
Muitas vezes o
culto tântrico/shakta tem uma finalidade apaziguadora, visando neutralizar o
impulso irascível de alguma divindade. Isto é mais claro principalmente no
primeiro conjunto destas forças femininas, das grahinis, divindades que regulam eventos biológicos. O termo grahini , usurpadora ou sequestradora, indica que estas deusas que
põem em risco a própria existência, causando abortos, mortes de neonatos ou
crianças, através de enfermidades, alterando os rituais de passagem na vida
humana, como nascimento , puberdade, casamento. Normalmente em grupo de seis são
conjugues de Skanda Karttikeya, o
deus da metalurgia. Apaziguadas elas se tornam protetoras. A deusa Śaşti, cultuada no sexto dia após o
nascimento, e associada ao culto de
Manasā, a deusa serpente. Hariti e Putāna também aparecem com freqüência entre elas.
O segundo
sistema é conhecido como das Sapta
(sete) Mātŗikās
(às vezes como as Ashta (oito) Mātŗikās. As letras do alfabeto em sua essência
primordial são conhecidas como Mātŗikās, quando desconhecidas elas
impelem as pessoas em direção as coisas mundanas e sensoriais, uma vez
conhecidas elas levam a libertação. Este conjunto de deusas é regente de um
conjunto de letras do devanagari (alfabeto sânscrito) , que também correspondem
aos vrittis (impressões sensoriais), os elementos dinâmicos que engendram o plano das ideias e do pensamento. Estas divindades são por isto controladoras
de nosso plano sensorial/emocional, são as formuladoras do psiquismo.
O conjunto
seguinte, das Nava Durgas, celebradas no festival de Navaratri
(setembro-outubro), são invocadas para a manutenção do Dharma. Elas são
regentes do nosso organismo social e deste com o seu ambiente natural e
geográfico, do nosso aspecto coletivo e ecológico. Elas são em ordem de
adoração nas nove noites no festival de Navaratri: Shail Putri ; Brahamcharini
; Chandragantha ; Kushmanda ; Skandamata; Katyayani; Kalaratri; Mahagauri;
Siddhidharatri.
A estas se
seguem um conjunto, psiquicamente mais elevado, de dez deusas responsáveis pela
remoção de Māyā, o universo dos fenômenos, e pela erradicação de avidhya (ignorância).
Conhecidas como MahaVidhyas (A grande ciência) este grupo
compreende as deusas Kali, Tara,
Chinnamasta, Tripura Sundari, Bhuwaneshvari, Bhairavi, Dhumavati, Bagalmukhi,
Matangi ,Kamala.
Estas
dotam à um sadhaka (aspirante) ainda limitado ao patamar das percepções
mundanas, dons como fala magnética,
consciência superior, carisma,
capacidade de transcendência, beleza, eloquência, discernimento superior, o
poder de impedir ações contrárias, transcendência sobre as aflições da vida
etc. Mas estas são estas mesmas shaktis, que conferem o instrumental para ultrapassar
as barreiras do mundo condicionado aos seus seguidores, permitindo a
emancipação das teias de Maya e consequente libertação.
Assim o ciclo das energias transformadoras, shaktis,
têm inicio com as grahinis, que garantem a existência orgânica e se encerra com
as Mahavidhyas que viabilizam a transcendência.
O panteão das deusas (devattas)
no hinduísmo é portanto dividido em ucca
(superiores) e kshudra
(inferiores). Estas atendem as obrigações cotidianas, e têm uma relação de
reciprocidade com o devoto. Ele a nutre com oferendas, e em contrapartida a
deusa corresponde a suas vontades.
Atendem aos apegos e aversões de seus seguidores, satisfazem às suas
necessidades mundanas pedindo em troca, apenas dádivas tangíveis. Alcançada
a graça, sua relação com as aspirações de seus cultuadores se encerra.
Entretanto, este escambo espiritual cria um círculo vicioso, já que o desejo
atendido fortalece atitudes e vontades do ahamkara
(individualidade transitória) que ao invés de se sublimar, aprofunda seus samskaras (hábitos) gerando uma dependência.
Bem sucedidos em saciar vontades temporárias, como jogadores
viciados, os que recorrem aos favores destas deusas afastam-se de seu real
objetivo: a emancipação das tramas do samsara
(mundo dos eventos efêmeros).
Por outro lado, no culto às denominadas deusas superiores,
o sadhaka (aspirante) é instado
a se aprimorar, o que implica em transformação pessoal, não se resumindo a
veleidades e caprichos transitórios. As deusas superiores preparam seus
seguidores despojando-os de seus anseios passageiros, apontando estas
expectativas como distrações de uma grande via, dirigindo seu foco para a
grande libertação final. A oferenda sacrificial
envolve uma mudança, não uma troca. O que as deusas superiores pedem é
a redescoberta da forma original, despojada dos lastros e adereços
adquiridos com os laços estabelecidos com a multiplicidade do mundo
empírico de nomes e formas (namarupa).
São entidades cultivadas através de práticas diárias, de uma disciplina de
conduta, de um compromisso chamado de sadhana,
um ritual onde a renúncia não se limita à dádivas, mas à atitudes pessoais.
As ucca devattas
são os desdobramentos iniciais da Maha Shakti, ou Mahadevi (grande Mãe Suprema),
imutável, eterna, absoluta. Estas divindades correspondem aos aspectos primordiais que
a Grande Deusa se submete no ato da criação, quando fica condicionada e sujeita
ao espaço e ao tempo. Via de regra são denominadas de Dasa Mahavidhyas, as dez grandes ciências, ou dez forças cósmicas.
O número dez corresponde às principais orientações do
espaço (norte, sul, leste, oeste, noroeste, nordeste, sudoeste, sudeste)
acrescida de mais duas posições: acima e abaixo. E, no aspecto orgânico, às dez
vias corporais (pele, olho, orelha, nariz, boca, pés, mãos, genitais, ânus)
por onde as sensações engendram a
consciência, assentada no caráter tríplice do tempo: passado, presente, futuro.
O sadhana das Mahavidhyas portanto é a disciplina não só do espaço, como do tempo. Quando dominamos as
sensações/emoções , controlamos a consciência, nosso instrumento de aferir a
passagem do tempo.
David Frawley divide estas deusas em dois grupos de cinco.
As primeiras cinco representando os elementos fundamentais da existência, com
Kali, representando o tempo; Tara, a palavra; Sundari , a luz; Bhuvaneshwari, o
espaço e Bhairavi a energia.
As outras cinco simbolizariam as forças transformadoras
oriundas da prática do yoga. Chhinamasta seria a percepção; Dhumavati o vazio;
Bagalamukhi a quietude; Matangi o conhecimento e Kamalatmika a bem-aventurança.
S. Shankaranarayan em seu estudo sobre estas deusas
encontra um paralelo entres estas e os avatares do deus Vishnu, criando
equivalentes entre o tantrismo e tradição védica. Krishna corresponderia à Kali,
em sua luta contra as forças negativas; Tara á Rama, ao propiciar a travessia
sobre turbulências; Bhuvaneshwari corresponderia ao javali Varaha, que eleva o
mundo sobre as águas; Tripurabhairavi, a energia da ascese seria Narasimha;
Dhumavati corresponderia a Vamana, a energia do vir a ser; Chinamasta à
Parashurama, sendo a energia que vivifica Renuka que teve sua cabeça cortada
pelo pai do avatar; a energia da agua representada por Kamaltmika está
associada ao avatar Matsya; a força imobilizadora e isolante do avatar Kurma
corresponde à deusa Bagalamukhi; a potencia do verbo de Matangi é associada à
Buda e finalmente a transmutação prenunciada pelo avatar Kalki no final das
eras é sinalizada no Tantra pela deusa tríplice Tripurasundari.
(próximo artigo: Kali)
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