Shaktismo, o culto ao poder feminino


                                (imagem nepalesa do século XVIII da deusa Dhumvati, 
                                                             uma viúva estéril que representa o Vir a Ser. Ela segura 
                                                             o espelho traindo o desejo de usufruir a existência 
                                                             no plano fenomenal. O espelho reflete o aspecto li-
                                                             mitante do potencial infinito do universo não criado.)
Shaktismo, o culto ao poder feminino
 Dr. Ruy Alfredo de Bastos Freire Filho
Diretor Centro de Estudos de Yoga Narayana

(Celebrando o inicio do Navarathri, culto as divindades que liberam a humanidade da ignorância, inciamos uma série de artigos sobre o culto shakta e as dez deusas Mahavidhyas)

Dentre as ramificações  do hinduísmo um dos sistemas mais complexos é o culto à sacralidade feminina, conhecido como shaktismo. O vocábulo shakti designa energia , a força motriz por trás de todos os  processos de transformação do mundo fenomenal, levando do estado potencial  ao seu aspecto manifesto. Para o hindu, a feminilidade é a quintessência da energia, sendo que sem ela toda a criação permanece latente, sem vir a despontar. Na iconografia shakta, a deusa Kali pisa o corpo inerte de Shiva, deus da transformação. ““Shiva sem Shakti é incapaz de criar coisa alguma. Quando associado a sua própria shakti se torna capaz de criar todas as manifestações.”  afirma o texto Vāmakeśvara Tantra.
Uma única grande fonte, a Mahadevi, grande deusa, gera todas as energias, que se ramificam em infindáveis  forças que sustentam a criação. Shiva, o aspecto masculino, é o detentor das sementes, a iminência de todos os fenômenos, mas somente a Mahadevi,  pode pô-los em movimento, já que é no abrigo do útero que ocorre a fertilização, a nidificação,  e o embrião é engendrado, sustentando todas etapas de transformação. Cada etapa é regida por uma divindade feminina, sacralizada e venerada. Shiva é o guardião, em seu estado potencial, da diversidade dos fenômenos, mas são as devis que fazem com que eles se manifestem.
A mulher, como visto como por inúmeras culturas ginocentricas, é o conector que liga os mundos,   um canal por onde as diversas formas de energia transitam , o locus que fecunda os fenômenos, ao promover o encontro entre duas realidades antes compartimentalizadas e estanques. Entre os mapuches , indígenas sul-americanos, a palavra que designa esposa-kure- significa literalmente “ cavidade fecunda (útero) por onde a energia pura se canaliza”. Na imensa maioria das religiões politeístas, as deusas são bem mais que apenas consortes das divindades masculinas, ocupando funções imprescindíveis para a sustentação da criação ao estabelecer uma ponte entre planos isolados.
O hinduísmo não foge à regra. No panteão védico, deusas como Aditi, Saraswati , Prithvi , Vach entre outras são mantenedoras do equilíbrio do universo aportando atributos que contrabalançam as ações masculinas. O mesmo ocorre com as chamadas deusas purânicas, como Lakshmi, Parvati, Gayatri e Durga. Esta última, uma consorte de Shiva, é que dá origem ao culto Shakta, que escapa do filtro sacerdotal dos brâmanes, gerando um sistema heterodoxo dentro do hinduísmo: o Tantra.
No Tantrismo, a feminilidade é trazida no seu aspecto integral, isto é, se na tradição ortodoxa as deusas enfatizam a expressão benevolente da feminilidade, associada á maternidade, como proteção, amparo, compaixão, a deusa Shakta (tântrica) carrega dentro de si todos elementos da energia feminina que transita por todos os polos do psiquismo humano, inclusive os menos auspiciosos. A mitologia de Durga enfatiza a importância de todas as energias mobilizadoras do psiquismo feminino na manutenção da ordem cósmica. Quando o controle do universo se viu ameaçado pelos asuras, inimigos dos deuses, estes se vêm obrigados a recorrerem à deusa, que com sua ira incontrolável destrói todos adversários.  Tres Mahavidhyas, desdobramentos de Durga, como Kali, Tara e Chinnamasta tem seus mitos associados a lutas e vitórias contra os asuras, seres poderosos, no entanto movidos pela ignorância. O termo Mahavidhya significa o grande saber, ou grande ciência, portanto os ritos associados à estas deusas, tem por fim derrotar os vestígios da insciência do aspirante.
Muitas vezes o culto tântrico/shakta tem uma finalidade apaziguadora, visando neutralizar o impulso irascível de alguma divindade. Isto é mais claro principalmente no primeiro conjunto destas forças femininas, das grahinis, divindades que regulam eventos  biológicos. O termo grahini , usurpadora ou sequestradora, indica que estas deusas que põem em risco a própria existência, causando abortos, mortes de neonatos ou crianças, através de enfermidades, alterando os rituais de passagem na vida humana, como nascimento , puberdade, casamento. Normalmente em grupo de seis são conjugues de Skanda Karttikeya, o deus da metalurgia. Apaziguadas elas se tornam protetoras. A  deusa Śaşti, cultuada no sexto dia após o nascimento,  e associada ao culto de Manasā, a deusa serpente. Hariti e Putāna também aparecem com freqüência entre elas.
O segundo sistema é conhecido como das Sapta (sete) Mātŗikās (às vezes como as Ashta (oito)  Mātŗikās. As letras do alfabeto em sua essência primordial são conhecidas como Mātŗikās, quando desconhecidas elas impelem as pessoas em direção as coisas mundanas e sensoriais, uma vez conhecidas elas levam a libertação. Este conjunto de deusas é regente de um conjunto de letras do devanagari (alfabeto sânscrito) , que também correspondem aos vrittis (impressões sensoriais), os elementos dinâmicos que engendram  o plano das ideias e do pensamento.  Estas divindades são por isto controladoras de nosso plano sensorial/emocional, são as formuladoras do psiquismo.
O conjunto seguinte, das Nava Durgas, celebradas no festival de Navaratri (setembro-outubro), são invocadas para a manutenção do Dharma. Elas são regentes do nosso organismo social e deste com o seu ambiente natural e geográfico, do nosso aspecto coletivo e ecológico. Elas são em ordem de adoração nas nove noites no festival de Navaratri: Shail Putri ; Brahamcharini ; Chandragantha ; Kushmanda ; Skandamata; Katyayani; Kalaratri; Mahagauri; Siddhidharatri.
A estas se seguem um conjunto, psiquicamente mais elevado, de dez deusas responsáveis pela remoção de Māyā, o universo dos fenômenos, e pela   erradicação de avidhya (ignorância). Conhecidas como   MahaVidhyas (A grande ciência) este grupo compreende as deusas Kali, Tara, Chinnamasta, Tripura Sundari, Bhuwaneshvari, Bhairavi, Dhumavati, Bagalmukhi, Matangi ,Kamala.
Estas  dotam à um sadhaka (aspirante) ainda limitado ao patamar das percepções mundanas,  dons como fala magnética, consciência superior,  carisma, capacidade de transcendência, beleza, eloquência, discernimento superior, o poder de impedir ações contrárias, transcendência sobre as aflições da vida etc. Mas estas são estas mesmas shaktis,  que conferem o instrumental para ultrapassar as barreiras do mundo condicionado aos seus seguidores, permitindo a emancipação das teias de Maya  e  consequente  libertação.
Assim o ciclo das energias transformadoras, shaktis, têm inicio com as grahinis, que garantem a existência orgânica e se encerra com as Mahavidhyas que viabilizam a transcendência.
O panteão das deusas (devattas) no hinduísmo é portanto dividido em ucca (superiores) e kshudra  (inferiores). Estas atendem as obrigações cotidianas, e têm uma relação de reciprocidade com o devoto. Ele a nutre com oferendas, e em contrapartida a deusa  corresponde a suas vontades. Atendem aos apegos e aversões de seus seguidores, satisfazem às suas necessidades mundanas pedindo em troca, apenas dádivas tangíveis.  Alcançada a graça, sua relação com as aspirações de seus cultuadores se encerra. Entretanto, este escambo espiritual cria um círculo vicioso, já que o desejo atendido fortalece atitudes e vontades do ahamkara (individualidade transitória) que ao invés de se sublimar, aprofunda seus samskaras (hábitos) gerando uma dependência. Bem sucedidos em saciar  vontades temporárias, como jogadores  viciados, os que recorrem aos favores destas deusas afastam-se de seu real objetivo: a  emancipação das tramas do samsara (mundo dos eventos efêmeros).
Por outro lado, no culto às denominadas deusas superiores, o sadhaka (aspirante) é  instado a se aprimorar, o que implica em transformação pessoal, não se resumindo a veleidades e caprichos transitórios. As deusas superiores preparam seus seguidores despojando-os de seus anseios passageiros, apontando estas expectativas como distrações de uma grande via, dirigindo seu foco para a grande libertação final. A  oferenda sacrificial envolve uma mudança, não uma  troca. O que as deusas superiores pedem é a redescoberta da forma original, despojada dos lastros e adereços adquiridos com os laços estabelecidos com a multiplicidade do mundo empírico de nomes e formas (namarupa). São entidades cultivadas através de práticas diárias, de uma disciplina de conduta, de um compromisso chamado de sadhana, um ritual onde a renúncia não se limita à dádivas, mas à atitudes pessoais.
As ucca devattas  são os desdobramentos iniciais da Maha Shakti, ou Mahadevi (grande Mãe Suprema), imutável, eterna, absoluta. Estas divindades correspondem aos aspectos primordiais que a Grande Deusa se submete no ato da criação, quando fica condicionada e sujeita ao espaço e ao tempo. Via de regra são denominadas de Dasa Mahavidhyas, as dez grandes ciências, ou dez forças cósmicas.
O número dez corresponde às principais orientações do espaço (norte, sul, leste, oeste, noroeste, nordeste, sudoeste, sudeste) acrescida de mais duas posições: acima e abaixo. E, no aspecto orgânico, às dez vias corporais (pele, olho, orelha, nariz, boca, pés, mãos,  genitais, ânus) por onde as sensações engendram  a consciência, assentada no caráter tríplice do tempo: passado, presente, futuro. O sadhana das Mahavidhyas portanto é a disciplina não só do espaço, como  do tempo. Quando dominamos as sensações/emoções , controlamos a consciência, nosso instrumento de aferir a passagem do  tempo. 
David Frawley divide estas deusas em dois grupos de cinco. As primeiras cinco representando os elementos fundamentais da existência, com Kali, representando o tempo; Tara, a palavra; Sundari , a luz; Bhuvaneshwari, o espaço e Bhairavi a energia.
As outras cinco simbolizariam as forças transformadoras oriundas da prática do yoga. Chhinamasta seria a percepção; Dhumavati o vazio; Bagalamukhi a quietude; Matangi o conhecimento e Kamalatmika a bem-aventurança.
S. Shankaranarayan em seu estudo sobre estas deusas encontra um paralelo entres estas e os avatares do deus Vishnu, criando equivalentes entre o tantrismo e tradição védica. Krishna corresponderia à Kali, em sua luta contra as forças negativas; Tara á Rama, ao propiciar a travessia sobre turbulências; Bhuvaneshwari corresponderia ao javali Varaha, que eleva o mundo sobre as águas; Tripurabhairavi, a energia da ascese seria Narasimha; Dhumavati corresponderia a Vamana, a energia do vir a ser; Chinamasta à Parashurama, sendo a energia que vivifica Renuka que teve sua cabeça cortada pelo pai do avatar; a energia da agua representada por Kamaltmika está associada ao avatar Matsya; a força imobilizadora e isolante do avatar Kurma corresponde à deusa Bagalamukhi; a potencia do verbo de Matangi é associada à Buda e finalmente a transmutação prenunciada pelo avatar Kalki no final das eras é sinalizada no Tantra pela deusa tríplice Tripurasundari.
(próximo artigo: Kali)

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